Percorre-se a estrada, os kilómetros avançam ou ficam para trás,
Paisagens, recordações, cheiros que passam e desaparecem
A estrada que desafia a partida, o recomeço ou o passado
Que se olha de frente com a vontade de avançar
A decisão ficou com o arranque do motor e não se olha para trás,
Avança-se ao voltar no tempo, parado pelos olhares perdidos.
Regressa-se à terra de ninguém,
Onde o vento agreste comanda os passos e o destino
E parecem estar todos à deriva, suspensos no deserto
Onde o vento impiedoso arrasta tudo e ficam os restos
a esvoaçar, os rolos de espigas enrolados no nada, perdidos.
Escureceu. Chegámos a meio caminho, paragem da estrada
Ninguém se cumprimenta, mas é a pausa merecida da estrada
Apenas os empregados sorriem com os olhos ávidos de
tudo e de nada, pois ali é lugar de passagem, onde tudo passa.
Excepto os souvenirs pendurados de vários clubs futebol,
vestígios da religião universal, linguagem comum que a todos motiva…
Parece que escuto a música… Trururuuuu… A entrada no saloon do faroeste…
Os olhares desconfiados e o demónio sentado no balcão
a sorrir… Hummm…É apenas o vento a uivar, que aos meus ouvidos soa a…
Contaram-me histórias de camionistas, pedaços de vidas duras que vão ficando pela estrada… Cavaleiros solitários, bravos heróis que se escondem por trás do volante.
Enfrentando os kms, ou viajando eternamente com a certeza no seu coração da liberdade! Paragens, em terras de ninguém, alguns abraçam o coração neón que pisca pisca na escuridão da estrada, como um apelo… Outros, seguem companheiros solidários dos kms infinitos que levam consigo como uma leve mochila, de um lado ao outro, apesar de levarem toneladas… Escolhas que se fazem pelo caminho!
Finda a noite da Lua redonda laranja, recomeçou a viagem que transporta o tempo! O tempo no lugar dos olhares perdidos e das palavras que se esqueceram de dizer, aquelas que importam!
Dormir na estrada, é entrar num estranho sonho, em que deixam de importar o espaço e os lugares, mas sim o que levamos dentro dali e de acolá… Onde?! Apenas um lugar que se chama de lugar, por deitarmos a cabeça descansados sobre a almofada das boas recordações, que nos fazem sorrir a dormir e talvez ao acordar…Sorrir com a certeza que são as pessoas que neles vivem e que vão connosco na viagem!
Subo para a nave espacial… Aqui vamos nós de novo! A caminho do objectivo, da rota cumprida, da carga a descarregar e a carregar nova, novas bagagens, novos destinos…
A vista é panorâmica e segue um filme antigo de velhas paisagens, desenhos nas nuvens, graffitis que animam edifícios abandonados, dos campos esquecidos…
As paisagens modernas dos montes repletos de moinhos gigantes, amigos ecológicos! Desertos de tecnologia… Seguem-se mais kms, a música acompanha o filme…
Entrámos num túnel interminável, de novo, a escuridão e são muitas as luzes e as ventoinhas, que acalmam ou despertam memórias ocultas…que passam… seguimos pelo túnel da luz amarela que hipnotiza, até que… a luz invade tudo outra vez! E conectei-me ao dia!
Chegámos à cidade do destino!
Dias que voaram na tempestade entre abraços e sorrisos amigos e o vento levou algo mais consigo… Levou as mágoas e trouxe vida àquele inóspito lugar a que se chama, terra de ninguém pelo desentendimento e pela morte de grandes sentimentos e grandes sonhos… São lugares áridos de sentimentos e de compaixão, ali as palavras transformam-se em pedras, a música em poeira e tudo seca, até o brilho dos olhos e as lágrimas não caiem, mas evaporam-se com as altas temperaturas da tensão acumulada, pelo ódio contido e as mágoas guardadas e os sorrisos são gargalhadas que ecoam mordazes e maléficas… O vento levou consigo toda a poeira, sim, no final o que resta é a poeira que desaparece…
Dias intensos que floresceram em lugares verdes e virgens pela pureza e a magia, imagens, palavras, gestos e abraços que serão eternos e brilham ofuscando outras recordações, outras cores que insistem em voltar... Como pó que entra nos olhos…
Volto costas à cidade carregada de malas, quadros e livros, pesos que fazem parte de mim, trapos, pedaços de mim recuperados, histórias e cultura que não sei viver sem e quadros queridos dos meus tios pintores, a arte, fiel amiga dos momentos íntimos e solitários… Parto com ajuda e desta vez sem olhar para trás, com a certeza, de uma vontade, de simplesmente avançar!
Voltámos à estrada…
Ao ritmo de 90km por hora, a paisagem que se estende de novo, parece alguém que se despe, rebola feliz na cama e mostra tudo, sem guardar vergonha… Os mesmos nomes repetem-se de terras como, Deleitosa, Contamina e a vila divida pela estrada, a típica vila de passagem, sem carisma, quase sem ruas e o seu único brilho são as luzes neón rosa e azul do céu, este é o faroeste ibérico, em Molinos Negros! Terras de alguém, mas parecem vultos que ali vivem!
Afinal, olho para trás, é inevitável perante semelhantes retrovisores gigantes, vejo a passagem que fica para trás e relembro que nada deixei ficar, apenas levo no peito a saudade da cidade que em tempos me hipnotizou e que ficará sempre com uma porta aberta para voltar!
A viagem de regresso foi mais longa, não apenas pelo peso das memórias e da bagagem, mas pela aventura de levar um camião que perdia gasóleo, sim, com três furos roubaram gasóleo… Sorte que são máquinas que levam muito… e de habilidades macgyver do meu companheiro desta viagem! Parámos literalmente no meio do nada, uma bomba de gasolina que estava rodeada do nada, umas montanhas ao longe e a estrada que nos levou até ali e nos leva a sair de novo… Mas antes cuidado, afinal há gente crente neste fim do mundo, respeito que estenderam o tapete para Meca e de joelhos abrigados do vento pelo camião rezam a Alá… Desculpem interromper, vamos seguir, é que faltam muitos kms… Desculpem…
De noite ao som de trance, parecemos por fim avançar… E eis que surge pela escuridão, o TGV veloz, iluminado pelas luzes do futuro no breu da noite, o comboio fantasma que seguia em direcção oposta a nós, e voltava, ora nos acompanhava ou despedia-se e desaparecia nas montanhas da escuridão… O comboio fantasma, que levou consigo todos os meus medos e os demónios que me atormentavam a cabeça…vai veloz…vai TGV fantasma!
Mais uma noite na estrada… O gasóleo está a aguentar e a obra de tapa furos também! O dia clareou efectivamente quando vejo a primeira placa com Portugal… No fundo… Há sempre um lugar que é nosso, o das origens e da infância e dos eternos amigos…
Uff… Sabe bem, por fim, chegar a Lisboa e a casa…