Um senhor de outros tempos...
A sua postura já tudo sugeria alguém distinto pelo olhar desenquadrado como um personagem que caiu ali por acaso, um senhor fora da realidade que o rodeia. Cada gesto e movimento, ao recusar-se sentar depois de lhe oferecerem lugar, ao estar de peito erguido perante a fauna do metro e o peso das suas costas, como um herõe que só existe nas histórias, do tempo medieval, como se fosse o D. Quixote ali no Metro!
D. Quixote de La Mancha que contas com esse olhar fundo... Olhos de quem já muito viu, mas ainda tem a visão de um falcão.
Fiquei intrigada com este senhor épico....
Era tarde já de noite, ambiente escuro de inverno e ambos não nos queríamos sentar no metro, seguiamos seguros de pé como uma viagem banal do metro. Sugeri apenas que se encostasse no cantinho, já que as curvas do metro conseguem até derrubar um homem com semelhante envergadura... Assim foi, ficámos encostados os dois e comentei que já não conseguia estar mais sentada, que estive sentada 8 horas no trabalho, ao que ele responde que também esteve umas 8 horas sentado, mas ao lado da sua mulher, num hospital e agora regressa a casa sozinho. Mas porquê digo eu, e ele responde com voz factídica que tem sido assim à 10 anos, de ir e voltar do hospital, durante 10 anos desde que a sua mulher tem alzeimer...
Fico estupefacta e digo-lhe com a maior das admirações, que dedicação que grande amor! Este senhor que no final fiquei sem saber o seu nome, acaba por falar em tom de desabafo da sua incredibilidade perante a vida. No quanto se passa tempo a trabalhar e os anos passam e parece que nada levamos, que tanto esforço dedicamos e acabámos sem nada.
Concordo com as suas palavras e olho para a sua expressão de olhar fundo, entrando nas profundezas da sua alma, que já está vazia de sonhos e está repleta de realismo, parecendo que no seu interior talvez o vento esteja a uivar e a silvar ao bater nas memórias já vividas e entre um presente que o fado determinou com um peso e agora a sua vida pesa... Mas o vento não pesa, pode gelar, pode isolar, mas traz a leveza do que é vazio e de quem já nada espera... Talvez.
Caras ou expressões que nos trazem impressões, que nos sugerem histórias e fantasiamos sobre cada ruga profunda daquele rosto, marcas do passar dos anos de todas as alegrias e as tristezas. Senti-me então como uma criança que aprendera a andar e ainda não se equilibra, ainda não pode com o seu próprio peso. Perplexa e tudo o que dentro de mim que pesava foi-se perdendo em fumaça, porque ali ao meu lado estava aquele olhar e aquela pessoa, que traz consigo uma velha maleta de memórias e sofrimentos inimagináveis e eu senti-me ridícula perante a minha existência, que tinha passado um dia que parecia que o mundo tinha acabado, que nada fazia sentido e que estava perdida no caos. Apenas voltada para o meu ego e a micro vida que tenho...
Continuamos a conversar, e ele insistia que da vida não levamos nada e que passámos o tempo a trabalhar, a trabalhar e no final que levamos?! Nada... Mas tentei afirmar a minha palavra perante tal verdade nua e crua, ao dizer e a sua mulher? E tudo o que passou com a sua mulher? Acaba por encolher os ombros e afirma que sim. E digo-lhe e quantas histórias viveram os dois e tanto para contar ao que ele, confirma com uma expressão e um som cúmplice ("pfffff"), afirmando que não há palavras para tanto e que eu nem podia imaginar.
D.Quixote dos tempos modernos continua a falar um pouco de si e um pouco de tudo, de como viveu a guerra e se sentiu um guerreiro de rua com os seus amigos, de como também o melhor que levámos no final são todos os bons livros e algumas ideias na cabeça, falou-me de livros imprescindíveis, Dois mil anos de história de um tal conde... Nisto enquanto tentava escrever e me deleitava, no momento em que ia perguntar o seu nome, D. Quixote dos tempos modernos salta na estação do Liceu e simplesmente diz "adiós"...
Entre mim, ficou uma lufada de ar fresco que me fez tocar na minha insignificância, e como perdemos tempo a discutir, a tentar reafirmar ideias ou sentimentos, a posicionar-se num lugar, a tentar recuperar o tempo e o que poderia ter sido e já era.
Obrigada D.Quixote, obrigada por surgires no meu caminho, no metro!
(Barcelona, Dezembro 08)
"(...)
¿Quién menoscaba mis bienes?
Desdenes.
¿Y quién aumenta mis duelos?
Los celos.
¿Y quién prueba mi paciencia?
Ausencia.
De ese modo, en mi dolencia
ningún remedia se alcanza,
pues me matan la esperanza
desdenes, celos y ausencia.
¿Quien me causa este dolor?
Amor.
¿Y quien mi gloria repugna?
Fortuna.
¿Y quién consiente en mi duelo?
El cielo.
De ese modo, yo recelo
morir de este mal estraño,
pues se aumentan en mi daño
amor, fortuna y el cielo.
¿Quién mejorará mi suerte?
La muerte.
Y el bien de amor, ¿ quién le alcanza?
Mudanza.
Y sus males, ¿ quién los cura?
Loucura.
De se modo, no es cordura
querer curar la pasión,
cuando los remedios son
muerte, mudanza y locura.
(...)
Soneto
Santa amistad, que con ligeras alas,
tu apariencia quedándose en el suelo,
entre benditas almas en el cielo
subiste alegre a las empíreas salas:
desde allá. cuando quieres, nos señalas
la justa paz cubierta con un velo,
por quien a veces se trasluce el celo
de buenas obras que a la fin son malas.
Deja el cielo, ¡oh amistad!, o no permitas
que el engaño se vista tu librea,
con que destruye a la intención sincera;
que si tus apariencias no le quitas,
presto ha de verse el mundo en la pelea
de la discorde confusión primera. "
"Don Quijote de la Mancha"
Miguel de Cervantes